Leitor Ideal



Notas para uma definição do leitor ideal

O leitor ideal é o escritor no exato momento que antecede a reunião das palavras na página.
O leitor ideal existe no instante que precede o momento da criação.
O leitor ideal não reconstrói uma história: ele a recria.
O leitor ideal não segue uma história: participa dela.
Um famoso programa da BBC sobre livros infantis começava, invariavelmente, com o animador perguntando: “Vocês estão sentados confortavelmente? Então vamos começar!”. O leitor ideal é também o sentador ideal.
Representações de são Jerônimo mostram-no debruçado sobre sua tradução da Bíblia, ouvindo a palavra de Deus. O leitor ideal deve aprender a ouvir.
O leitor ideal é o tradutor. Ele é capaz de dissecar o texto, retirar a pele, fazer um corte até a medula, seguir cada artéria e cada veia e depois dar vida a um novo ser sensível. O leitor ideal não é um taxidermista.
Para o leitor ideal todos os recursos são familiares.
Para o leitor ideal todas as brincadeiras são novas.
“É preciso ser um inventor para ler bem.”
O leitor ideal tem uma aptidão ilimitada para o esquecimento...
O leitor ideal sabe aquilo que o escritor apenas intui.
O leitor ideal subverte o texto. O leitor ideal não pressupõe as palavras do escritor.
O leitor ideal é um leitor cumulativo: sempre que lê um livro ele acrescenta uma nova camada de lembranças à narrativa.
Todo leitor ideal é um leitor associativo. Lê como se todos os livros fosse obra de um autor intemporal e prolífico.
O leitor ideal não pode expressar seu conhecimento por meio de palavras.
Depois de fechar o livro, o leitor ideal sente que se não o tivesse lido o mundo seria mais pobre.
O leitor ideal jamais contabiliza seus livros.
O leitor ideal é ao mesmo tempo generoso e ávido.
O leitor ideal lê toda literatura como se fosse anônima.
O leitor ideal gosta de usar o dicionário.
O leitor ideal julga um livro por sua capa.
Ao ler um livro de séculos atrás, o leitor ideal sente-se imortal.
Paolo e Francesca não eram leitores ideais, pois confessaram ao Dante que depois de seu primeiro beijo pararam de ler. Leitores ideais teriam se beijado e continuariam lendo. Um amor não exclui o outro.
O leitor ideal não sabe que é o leitor ideal até chegar ao final do livro.
O leitor ideal partilha da ética de Dom Quixote, o desejo de Madame Bovary, a luxúria da esposa de Bath, o espírito aventureiro de Ulisses, a integridade de Holden Caufield, ao menos no espaço textual.
O leitor ideal percorre as trilhas conhecidas. “Um bom leitor, um leitor importante, um leitor ativo e criativo é um leitor que relê.”
O leitor ideal é politeísta.
O leitor ideal assegura, para um livro, a promessa da ressurreição.
Robinson Crusoé não é um leitor ideal. Lê a Bíblia para encontrar respostas. Um leitor ideal lê para encontrar perguntas.
O leitor ideal não tem uma nacionalidade precisa.
Às vezes, um escritor pode esperar muitos séculos para encontrar um leitor ideal. Blake demorou 150 anos para encontrar Northrop Frye.
Os leitores ideais mudam com a idade. Aquele que aos 14 anos foi um leitor ideal dos Vinte poemas de amor de Neruda já não o é aos 30. A experiência apaga o brilho de certas leituras.
Pinochet, que proibiu Dom Quixote por pensar que esse livro incitava à desobediência civil, foi seu leitor ideal.
O leitor ideal deve estar disposto não apenas a surpreender a incredulidade, mas a abraçar uma nova fé.
O leitor ideal nunca pensa: “Se ao menos…”.
Anotações nas margens indicam um leitor ideal.
O leitor ideal faz proselitismo.
O leitor ideal é volúvel e não sente culpa disso.
O leitor ideal é capaz de se apaixonar por um dos personagens do livro.
O leitor ideal não se preocupa com os anacronismos, com a verdade documentada, com a exatidão histórica, com a precisão topográfica. O leitor ideal não é um arqueólogo.
O leitor ideal é um cumpridor implacável das regras e normas que cada livro cria para si mesmo.
“Há três tipos de leitor: o que aprecia o livro sem julgá-lo; o que o julga sem apreciá-lo; e o que o julga enquanto aprecia e aprecia enquanto julga. O último tipo verdadeiramente reproduz uma obra de arte novamente; seus exemplos não são numerosos.”
Os leitores que cometeram suicídio depois de ler Werther não eram ideais, mas simplesmente leitores sentimentais.
Os leitores ideais quase nunca são sentimentais.
O leitor ideal quer chegar ao final do livro e ao mesmo tempo sabe que o livro jamais terminará.
O leitor ideal nunca se impacienta.
O leitor ideal não liga para os gêneros.
O leitor ideal é (ou parece ser) mais inteligente do que o escritor; o leitor ideal não usa isso contra ele.
Há um momento em que cada leitor se considera o leitor ideal.
Boas intenções não são suficientes para produzir um leitor ideal.
O Marquês de Sade: “Só escrevo para quem é capaz de me entender, e eles me lerão sem perigo”. O Marquês de Sade está errado: o leitor ideal está sempre em perigo.
O leitor ideal é o personagem principal de um romance.
“Um ideal literário: a saber, enfim, não dispor na página nada além do ‘leitor’”.
O leitor ideal é alguém com quem o autor não se importaria em passar uma noite bebendo uma taça de vinho.
Um escritor nunca é seu próprio leitor ideal.
A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons.
Um leitor ideal não deveria ser confundido com um leitor virtual.
Todo livro, bom ou ruim, tem seu leitor ideal.


Alberto Manguel